A crença comum, repetida à exaustão em salas de aula e palanques, é a de que vivemos em uma democracia plena desde 1988. Votamos regularmente, elegemos nossos representantes e vivemos sob a égide de uma Constituição Cidadã. No entanto, uma análise mais fria e menos apaixonada das estruturas de poder revela uma realidade distinta e inquietante: o Brasil não é uma democracia substantiva, mas um regime político eleitoral de gestão civil do autoritarismo.
Neste sistema, o ritual do voto serve apenas
para validar periodicamente os "gerentes civis" de uma máquina
estatal que continua a operar sob lógicas de exceção, violência e privilégio. É
uma democracia de baixa intensidade, blindada contra a soberania popular, onde
civis administram o orçamento e a burocracia, enquanto a "espinha
dorsal" do Estado mantém intacta sua natureza repressiva.
Para comprovar essa tese, não precisamos
recorrer a teorias da conspiração. Basta olhar para a jurisprudência. Três
decisões fundamentais do Supremo Tribunal Federal (STF) desenham, com clareza
solar, a arquitetura desse autoritarismo velado.
A primeira delas valida a fundação na
impunidade da democracia constitucional de 1988. Um vício tão grave que é impossível
isolá-lo das consequências que vivemos até hoje. O alicerce desse regime foi
cimentado na decisão da ADPF 153, que validou a Lei da Anistia de 1979.
Ao julgar improcedente a ação que questionava a anistia aos agentes estatais
que torturaram e mataram durante a ditadura militar, o Judiciário brasileiro
consolidou o que chamamos de "transição pelo alto".
Diferente de vizinhos como Argentina e Chile,
que puniram seus carrascos, o Brasil optou por uma "conexão criminal"
fictícia. Equiparou-se crimes políticos de opositores (feitos em resistência)
aos crimes comuns de lesa-humanidade praticados pelo Estado (tortura,
desaparecimento). O argumento vencedor no tribunal foi o de que a anistia foi
um "acordo político" necessário para a transição — uma
"lei-medida" interpretada conforme a realidade histórica de 1979,
ignorando a luz da nova Constituição de 1988.
O Significado Político: Ao recusar a
revisão da anistia, o Estado brasileiro admitiu que sua "democracia"
só existe sob a condição de não tocar nas estruturas armadas e repressivas do
passado. O autoritarismo permaneceu intacto nas polícias e quartéis; mudou-se
apenas a gestão, agora feita por civis que aceitaram o pacto de não punição.
Se a ADPF 153 garantiu a impunidade do
passado, a ADPF 496 garantiu a manutenção da hierarquia no presente. Ao
julgar a constitucionalidade do crime de desacato (art. 331 do Código
Penal), o STF decidiu que a criminalização da ofensa a funcionário público é
compatível com a Constituição.
O argumento utilizado é revelador da
mentalidade estatal: a criminalização não seria um privilégio, mas uma
"proteção da função pública". A decisão ignorou recomendações da
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que vê no desacato uma ferramenta
de silenciamento e censura. O tribunal reafirmou que o Estado pode usar o
direito penal para proteger a "autoridade" de seus agentes contra o
"menosprezo" do cidadão.
O Significado Político: Em uma
democracia real, o funcionário público é um servidor do cidadão. No
"regime de gestão civil do autoritarismo", o agente do Estado está acima
do cidadão. A manutenção do desacato é a ferramenta jurídica que lembra,
diariamente, quem manda e quem obedece, reforçando o abismo entre a burocracia
estatal e a população, especialmente nas periferias onde a cidadania é
censitária e a necropolítica é a regra.
O golpe final na ilusão democrática se revela
na decisão liminar da ADPF 1.259-MC (datada de dezembro de 2025). Nesta
decisão, o sistema fechou o circuito em si mesmo ao reescrever a Lei do
Impeachment para blindar a cúpula do Judiciário de qualquer controle popular ou
parlamentar efetivo.
A decisão trouxe três mudanças drásticas: Exclusão
do Cidadão: Suspendeu a legitimidade de "todo cidadão" denunciar
Ministros do STF, concentrando esse poder exclusivamente nas mãos do
Procurador-Geral da República (outro membro da elite burocrática); Imposição
da Minoria: Aumentou o quórum para admissão de impeachment no Senado de
maioria simples para dois terços (2/3), tornando a fiscalização quase
impossível; Imunidade Absoluta: Proibiu que Ministros sejam processados
pelo conteúdo de suas decisões, sob o pretexto de evitar o "crime de
hermenêutica".
A justificativa oficial é a
"independência judicial" e a proteção contra "maiorias de
ocasião". Na prática, criou-se uma casta de gestores civis no topo da
pirâmide que se tornou intocável. O cidadão perdeu o direito de fiscalizar, e o
Senado (o poder eleito) teve suas mãos atadas por exigências procedimentais
inalcançáveis.
Para entender por que o Judiciário decide
dessa forma, precisamos olhar para a sociologia do nosso Estado. O Brasil vive
uma continuidade escravocrata, onde a estrutura social baseia-se na
humilhação e na subalternidade.
As Forças Armadas e a elite burocrática ainda
se veem como um "Poder Moderador". O poder civil governa apenas
enquanto não ameaça os interesses fundamentais desse estamento. Para as classes
baixas, o Estado comparece quase exclusivamente na forma de polícia e
repressão. O encarceramento em massa e a letalidade policial são faces de um
Estado que gere a miséria através do cárcere, não da inclusão.
O sistema eleitoral, portanto, funciona como
validação, não como ferramenta de mudança. Quando as urnas produzem um
resultado que desagrada o establishment ou ameaça reformas estruturais,
o Judiciário atua como agente político corretivo, garantindo a manutenção do status
quo.
Ao unirmos os pontos dessas três decisões, o
desenho do regime fica claro e hermético: ADPF 153: Garante que o braço
armado do Estado não seja punido por crimes passados ou presentes; ADPF 496:
Garante que o cidadão comum possa ser preso se "desrespeitar" a
autoridade do funcionário público na esquina; ADPF 1.259-MC: Garante que
a cúpula do Judiciário e da burocracia esteja imune ao controle popular e
político.
O que chamamos de democracia no Brasil é,
portanto, um sistema de validação eleitoral. Escolhemos representantes
que, uma vez no poder, não governam para mudar as estruturas, mas para gerir
esse legado autoritário. As eleições ocorrem, há alternância de partidos, mas o
poder real — o poder de punir, de mandar, de matar e de se autopreservar —
permanece blindado nas mãos de uma casta civil e militar que não responde, de
fato, a ninguém.
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