A chamada “Questão RJ” não se resume a uma chacina nem a uma faxina, mas é o sintoma visível de uma doença estrutural que atravessa o Estado brasileiro. Nenhum tweet, manchete ou vídeo curto é capaz de captar a complexidade do que acontece no Rio de Janeiro. O que se vê nas operações recentes é a ponta de um sistema que combina falência institucional, desigualdade crônica e cumplicidade entre o poder público e o crime organizado. O problema é antigo, mas reaparece com cada corpo estendido nas ruas e com cada discurso oficial que promete soluções imediatas para males que são constitutivos do próprio Estado.
A primeira camada dessa crise está na superficialidade das narrativas midiáticas e políticas. A cobertura jornalística e o debate nas redes sociais transformam a tragédia em espetáculo, reduzindo uma questão estrutural a slogans morais — “bandido bom é bandido morto” de um lado, “chacina do Estado” de outro. Essa simplificação é conveniente: converte o horror em consumo rápido e oferece ao público a ilusão de que algo está sendo feito. No entanto, por trás das imagens e hashtags, permanecem intactas as dinâmicas de poder que sustentam a violência cotidiana.
No terreno, quem morre e quem mata pertence ao mesmo estrato social: o baixo escalão. São jovens policiais e jovens traficantes, ambos precarizados, ambos descartáveis. A guerra que se anuncia como “combate ao crime” é, na prática, um conflito entre pobres, conduzido por elites que jamais pisam no front. Essa assimetria revela a funcionalidade da violência: ela preserva as hierarquias sociais, renova o ciclo do medo e reafirma o papel simbólico do Estado como detentor legítimo da força — ainda que essa força se exerça de forma desigual e desumana.
As operações de grande escala, com tanques e helicópteros, são mais encenações de poder do que políticas de segurança públicas. Depois de inúmeras Operações de 'Garantia da Lei e da Ordem', Intervenção Federal e todo o teatro institucional, as “pilhas de cadáveres” exibidas como troféus não representam vitória, mas marketing estatal. A sociedade que comemora não é cruel ou desumana, mas é exausta e incrédula, e por isso aceita o espetáculo como substituto da justiça: é mais fácil aplaudir a repressão do que encarar as causas profundas da criminalidade. O Estado oferece sangue como prova de eficiência, e a mídia transforma esse sangue em manchetes, alimentando o círculo vicioso da violência e da indiferença.
A “Questão RJ” também ultrapassa os limites geográficos do Rio de Janeiro. Ela é uma metáfora da falência nacional. Décadas de governos de esquerda e de direita, eventos internacionais, megaprojetos e festas globais transformaram o Rio em vitrine de modernidade, mas a vitrine sempre esteve rachada. Por trás do brilho da Copa, das Olimpíadas e das cúpulas do G-20, persistem as mesmas estruturas de exclusão e de abandono. O Rio é palco porque o Brasil inteiro é bastidor: a violência urbana é o reflexo visível de um Estado que nunca se reformou.
No núcleo do problema está a simbiose entre crime, Estado e mercado. O poder das facções não se sustenta sem conexões políticas, econômicas e institucionais. Lavagem de dinheiro, corrupção policial, financiamento de campanhas, contratos públicos e negócios ilegais formam uma teia que torna o crime parte integrante da economia nacional. Por isso, o combate é sempre superficial: se as investigações fossem realmente profundas, chegariam às elites que se beneficiam da desordem. A repressão, assim, é um teatro necessário para proteger o próprio sistema.
A conclusão inevitável é amarga. O enfrentamento à criminalidade no Brasil é deliberadamente limitado, porque o Estado combate um inimigo que ele mesmo ajuda a manter vivo. A “Questão RJ” não é uma anomalia, mas um espelho — um reflexo cruel do modo como o país administra sua desigualdade e perpetua sua própria ruína. Enquanto o sangue dos de baixo continuar servindo de espetáculo para apaziguar a consciência dos de cima, nenhuma operação trará paz duradoura. Apenas silêncio temporário entre duas tragédias.